sexta-feira, 3 de agosto de 2012

A leitura da leitura

Por Lucília Garcez

Se você está lendo este texto significa que está entre os 26% da população que atingiu o alfabetismo pleno. Você conquistou e dominou uma das tecnologias mais sofisticadas e refinadas que o processo civilizatório desenvolveu. Compreende que a LEITURA é emancipadora, libertadora, iluminadora e nos permite observar a vida através de muitos outros olhares, o que nos amplia a visão de mundo.

Mas, segundo a recente pesquisa da Ação Educativa e do Instituto Paulo Montenegro, com o Ibope, 32,5 milhões de brasileiros acima de 15 anos são analfabetos funcionais, ou seja, apenas decodificam as palavras, mas são incapazes de compreender o que leem e de usar a leitura e a escrita como instrumentos de ação efetiva nas práticas sociais. E, mais grave, o ensino universitário não assegura solução, pois 38% dos portadores de diploma de curso superior não alcançam o nível de alfabetização plena.

Esses dados não são surpreendentes em um país de não leitores. A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 2011, do Instituto Pró-Livro, mostrou que 50% dos brasileiros não têm o costume de ler, 75% da população nunca entrou numa biblioteca, e a média de livros por habitante/ano é 4, inclusive os didáticos; sem os didáticos, a leitura cai para 1 livro por habitante/ano.

Em países de Primeiro Mundo, os índices indicam mais de 10 livros por habitante/ano. Se considerarmos que a leitura é fator essencial para o desenvolvimento humano, social e econômico de um país, pois o avanço tecnológico depende de qualificação e a qualificação está ligada à habilidade de leitura, encontramos um dos motivos do nosso atraso.

É urgente reverter o quadro da leitura no Brasil. Mas dominar essa competência envolve um percurso, muitas vezes descontínuo e cheio de obstáculos, e qualquer iniciativa em direção ao estímulo à leitura deve envolver diversos agentes e diferentes segmentos sociais: famílias, escolas, professores, bibliotecários, autores, meios de comunicação, governo.

O desenvolvimento da leitura depende de convívio contínuo com histórias, livros e leitores, desde a primeira infância; valorização da leitura pelo grupo social; disponibilidade de acervo de qualidade e adequado aos horizontes de desejo e aos diferentes estágios de leitura dos leitores; tempo para ler, sem interrupções; ambiente de segurança psicológica e de tolerância dos educadores em relação ao percurso individual de superação de dificuldades; e oportunidades para expressar e compartilhar interpretações e emoções vividas nas experiências de leitura.

O ato de ler, seja texto informativo ou de Guimarães Rosa, é, simultaneamente, atividade individual única e experiência interpessoal profunda e intensa, um exercício dialógico ímpar, pois, entre leitor e texto, se desencadeia um processo de decifração, interpretação, reflexão e reavaliação de conceitos absolutamente renovado a cada leitura.

A leitura exige procedimentos mentais complexos construídos pela mediação do outro: o pensamento abstrato, a memorização, a atenção voluntária, o comportamento intencional, as ações conscientemente controladas, a generalização, as associações, o planejamento, as comparações, ou seja, as funções superiores da mente que nos fazem humanos, como afirma Vygotsky.

Nem sempre é procedimento fácil. Ela faz inúmeras solicitações simultâneas ao cérebro. Desde a decodificação de signos, interpretação de itens lexicais e gramaticais, agrupamento de palavras em blocos conceituais, identificação de palavras-chave, seleção e hierarquização de ideias, associação com informações anteriores, antecipação de informações, elaboração e reconsideração de hipóteses, construção de inferências, compreensão de pressupostos, controle de velocidade, focalização da atenção, avaliação do processo realizado, até a reorientação dos próprios procedimentos mentais para a compreensão efetiva e responsiva, realiza-se um complexo processo cognitivo. E ler se aprende lendo.

Além disso, a leitura não se esgota no momento em que se lê, mas se expande por todo o processo de compreensão que antecede o texto, explora-lhe as possibilidades e prolonga-lhe o funcionamento para depois da leitura propriamente dita, enriquecendo a vida e o convívio com o outro. Como se vê, trata-se de atividade exigente, que vai na contramão dos apelos da nossa sociedade veloz. Em boa hora o MinC e a Biblioteca Nacional lançam a campanha
Leia Mais, Seja Mais, no âmbito da ações do Plano Nacional do Livro e Leitura que tem como um dos eixos a valorização social da leitura.

*Lucília Garcez é doutora em linguística, escritora, ex-professora da UnB, autora de técnica de redação, entre outros livros. Artigo publicado no Correio Braziliense – DF / Opinião

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