terça-feira, 21 de agosto de 2012

Roger Chartier: "Os livros resistirão às tecnologias digitais" - Por Cristina Zahar (novaescola@atleitor.com.br)

Especialista em história da leitura afirma que a Internet pode se transformar em aliada dos textos por permitir sua divulgação em grande escala


O francês Roger Chartier - é um dos mais reconhecidos historiadores da atualidade. Professor e pesquisador da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e professor do Collège de France, ambos em Paris, também leciona na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, e viaja o mundo proferindo palestras.
Sua especialidade é a leitura, com ênfase nas práticas culturais da humanidade. Mas ele não se debruça apenas sobre o passado. Interessa-se também pelos efeitos da revolução digital. "Estamos vivendo a primeira transformação da técnica de produção e reprodução de textos e essa mudança na forma e no suporte influencia o próprio hábito de ler", diz.
Diferentemente dos que prevêem o fim da leitura e dos livros por causa dos computadores, Chartier - acha que a internet pode ser uma poderosa aliada para manter a cultura escrita. "Além de auxiliar no aprendizado, a tecnologia faz circular os textos de forma intensa, aberta e universal e, acredito, vai criar um novo tipo de obra literária ou histórica. Dispomos hoje de três formas de produção, transcrição e transmissão de texto: a mão, impressa e eletrônica - e elas coexistem."
No fim de junho, Chartier - esteve no Brasil para lançar seu livro Inscrever & Apagar, em que discute a preservação da memória e a efemeridade dos textos escritos. Nesta entrevista, ele conta como a leitura se popularizou no século 19, mas destaca que bem antes disso já existiam textos circulando pelos lugares mais remotos da Europa na forma de literatura de cordel e de bibliotecas ambulantes.

Confira os principais trechos da conversa.

Como era, no passado, o contato das crianças e dos jovens com a leitura?

Chartier:  A literatura se restringia às peças teatrais. As representações públicas em Londres, como podemos ver nas últimas cenas do filme Shakespeare Apaixonado, e nas arenas da Espanha são exemplos disso. Já nos séculos 19 e 20, as crianças e os jovens conheciam a literatura por meio de exercícios escolares: leitura de trechos de obras, recitações, cópias e produções que imitavam o estilo de autores antigos, como as famosas cartas da escritora Madame de Sévigné (1626-1696) e as fábulas de La Fontaine (1621-1695).

Quando a leitura se tornou popular?

Chartier:  No século 19, surgiu um novo contingente de leitores: crianças, mulheres e trabalhadores. Para esses novos públicos, os editores lançaram livros escolares, revistas e jornais. Porém, desde o século 16, existiam livros populares na Europa: a literatura de cordel na Espanha e em Portugal, os chapbooks (pequenos livros comercializados por vendedores ambulantes) na Inglaterra e a Biblioteca Azul (acervo que circulava em regiões remotas) na França. Por outro lado, certos leitores mais alfabetizados que os demais se apropriaram dos textos lidos pelas elites.O livro O Queijo e os Vermes, do italiano Carlo Guinzburg, publicado em 1980, relata as leituras de um moleiro do século 16.

As práticas atuais de leitura têm relação com as práticas do passado?

Chartier: É claro. Na Renascença, por exemplo, a leitura e a escrita eram acessíveis a poucas pessoas, que utilizavam uma técnica conhecida como loci comunes, ou lugares-comuns, ou seja, exemplos a serem seguidos e imitados. O leitor assinalava nos textos trechos para copiar, fazia marcações nas margens dos livros e anotações num caderno para usar essas citações nas próprias produções. No século 16, editores publicaram compilações de lugares-comuns para facilitar a tarefa dos leitores, como fez o filósofo Erasmo de Roterdã (1466-1536).

Em que medida compreender essas e outras práticas sociais de leitura pode transformar a relação com os textos escritos?

CHARTIER: Os estudos da história da leitura costumam esquecer dois importantes elementos: o suporte material dos textos e as variadas formas de ler. Eles são decisivos para a construção de sentido e interpretação da leitura em qualquer época. Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes (1547-1616), era lido em silêncio, como hoje, mas também em voz alta, capítulo por capítulo, para platéias de ouvintes. Todas as pesquisas nessa área formam um patrimônio comum com o qual os professores podem construir estratégias pedagógicas, considerando as práticas de leitura.

Que papel a literatura ocupa na Educação atual?

Chartier  A escola se afastou da literatura, principalmente no Brasil, porque está preocupada em oferecer ao maior número possível de crianças as habilidades básicas de leitura e escrita. Mas acredito que os professores devem acolher a literatura novamente, da alfabetização aos cursos de nível superior, como mostram várias experiências pedagógicas. Na França, por exemplo, um filme recém-lançado exibe uma peça do dramaturgo Pierre de Marivaux (1688-1763) encenada por jovens moradores de bairros pobres.

Muitos dizem que desenvolver o gosto dos jovens pela leitura é um desafio.

Chartier:  Certamente. Mas é papel da escola incentivar a relação dos alunos com um patrimônio cultural cujos textos servem de base para pensar a relação consigo mesmo, com os outros e o mundo. É preciso tirar proveito das novas possibilidades do mundo eletrônico e ao mesmo tempo entender a lógica de outro tipo de produção escrita que traz ao leitor instrumentos para pensar e viver melhor.

O senhor quer dizer que a internet pode ajudar os jovens a conhecer a riqueza do mundo literário?

Chartier:  Sim. O essencial da leitura hoje passa pela tela do computador. Mas muita gente diz que o livro acabou, que ninguém mais lê, que o texto está ameaçado. Eu não concordo. O que há nas telas dos computadores? Texto - e também imagens e jogos. A questão é que a leitura atualmente se dá de forma, fragmentada, num mundo em que cada texto é pensado como uma unidade separada de informação. Essa forma de leitura se reflete na relação com as obras, já que o livro impresso dá ao leitor a percepção de totalidade, coerência e identidade - o que não ocorre na tela. É muito difícil manter um contato profundo com um romance de Machado de Assis no computador.

Essa fragmentação dos conteúdos na internet não afeta negativamente a formação de novos leitores?

Chartier:  Provavelmente sim. Na internet, não há nada que obrigue o leitor a ler uma obra inteira e a compreender em sua totalidade. Mas cabe às escolas, bibliotecas e meios de comunicação mostrar que há outras formas de leitura que não estão na tela dos computadores. O professor deve ensinar que um romance é uma obra que se lê lentamente, de forma reflexiva. E que isso é muito diferente de pular de uma informação a outra, como fazemos ao ler notícias ou um site. Por tudo isso, não tenho dúvida de que a cultura impressa continuará existindo.

As novas tecnologias não comprometem o entendimento e o sentido completo de uma obra literária?

Chartier:  Sim e não. A pergunta que devemos nos fazer é: o que é um texto? O que é um livro? A tecnologia reforça a possibilidade de acesso ao texto literário, mas também faz com que seja difícil apreender sua totalidade, seu sentido completo. É a mesma superfície (uma tela) que exibe todos os tipos de texto no mundo eletrônico. É função da escola e dos meios de comunicação manter o conceito do que é uma criação intelectual e valorizar os dois modos de leitura, o digital e o papel. É essencial fazer essa ponte nos dias de hoje.

Pesquisas realizadas em vários países mostram que o uso do computador na Educação, quando acompanhado de métodos pedagógicos, melhora, sim, o aprendizado, acelera a alfabetização e permite o domínio das regras da língua, como a ortografia e a sintaxe. É preciso desenvolver políticas públicas que tenham por objetivo a correta utilização da tecnologia na sala de aula.

O senhor acha que o e-paper (dispositivo eletrônico flexível como uma folha de papel) é o futuro do livro?

Chartier: Os textos eletrônicos são abertos, maleáveis, gratuitos e esses aspectos são contrários aos da publicação tradicional de um texto (que pressupõe a criação de um objeto de negócio). Para ser publicado, um texto deve ser estável. Na internet, os textos eletrônicos continuaram protegidos, ou seja, não podem ser alterados, e têm de ser comprados e descarregados no computador do usuário integralmente. Para mim, a discussão sobre o futuro dos livros passa pela oposição entre comunicação eletrônica e publicação eletrônica, entre maleabilidade e gratuidade.

Ao longo da história da humanidade, acompanhamos a passagem da leitura oral para a silenciosa, a expansão dos livros e dos jornais e a transmissão eletrônica de textos. Qual foi a mais radical?

Chartier: Sem dúvida, a transmissão eletrônica. E por uma razão bastante simples: nunca houve uma transformação tão radical na técnica de produção e reprodução de textos e no suporte deles. O livro já existia antes de Guttenberg criar os tipos móveis, mas as práticas de leitura começaram lentamente a se modificar com a possibilidade de imprimir os volumes em larga escala. Hoje temos no mundo digital um novo suporte, a tela do computador, e uma nova prática de leitura, muito mais rápida e fragmentada. Ela abre um mundo de possibilidades, mas também muitos desafios para quem gosta de ler e sobretudo para os professores, que precisam desenvolver em seus alunos o prazer da leitura.

É muito fácil publicar informações falsas na Internet. Como evitar isso?

Chartier:  A leitura do texto eletrônico priva o leitor dos critérios de julgamento que existem no mundo impresso. Uma informação histórica publicada num livro de uma editora respeitada tem mais chance de estar correta do que uma que saiu numa revista ou num site. É claro que há erros nos livros e ótimos artigos em revistas e sites. Mas há um sistema de referências que hierarquiza as possibilidades de acerto no mundo impresso e que não existe no mundo digital. Isso permite que haja tantos plágios e informações falsas. Precisamos fornecer instrumentos críticos para controlar e corrigir informações na internet, evitando que a máquina seja um veículo de falsificação.

Quer saber mais?

Bibliografia

A Aventura do Livro, Roger Chartier, 160 págs., Ed. Unesp, tel. (11) 3661-2881, 53 reais

História da Leitura no Mundo Ocidental, vol. 2, Roger Chartier e Guglielmo Cavallo, 248 págs., Ed. Ática, tel. (11) 3990-2100, 35,50 reais
Inscrever & Apagar, Roger Chartier, 336 págs., Ed. Unesp, 35 reais

O Queijo e os Vermes, Carlo Ginzburg, 256 pág., Ed. Cia. das Letras, tel. 0800-014-2829, 19,50 reais

Práticas da Leitura, Roger Chartier, 268 págs., Ed. Estação Liberdade, tel. (11) 3661-2881, 42 reais

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